21.11.08

O espelho

Uma cara no espelho de um banheiro úmido e quente de um pé sujo qualquer. Um pé sujo que de tão qualquer, desaparece da memória. O rosto talvez pareça molhado de cansaço, solto pelo ar do pensamento distante, denunciado pelo olhar-além: o que está a frente do olho pouco importa. Nessa hora o abstrato vira concreto, a fluidez vira fardo e por vezes, inversamente, o sólido se dissolve. O nove vira zero.
As circunstâncias estocam os olhos avermelhados e o espelho pela primeira vez tem plasticidade para além do objeto domesticado que comumente é. É uma moldura pronta para ser preenchida, mesmo que o ser próprio sempre permaneça de frente para o mesmo. O olhar diz quem é o espelho, não é ele que diz a cor do olho, é olho que diz de si mesmo. O mesmo olho que absorve do mundo os instrumentos do juízo. Quem não é juiz?
Indiscernível em determinada altura de acontecimento saber se a gordura é espelho ou rosto, quiçá uma camada intermediária de matéria desenhada cuidadosamente pelos acontecimentos anteriores, pois os dois têm uma historicidade, uma textura temporal, já que o tempo também tem espessura, uma rugosidade proporcional ao desfrute. Pobre de quem não tem espessura rugosa. Geralmente exigimos menos desgaste do espelho afim de se tornar mais palatável ao consumo, parecer novo no mercado: sinais dos tempos. Pura contradição querer menos corrosão para ser passível de ser corroído, e ao sê-lo exigir não ser.
Não seria estranho avaliar um tempo por suas contradições, e o dilema agora está no espelho, essa coisa que aprisiona e se funde no rosto para impedir que os olhos alcancem o além e transcenda no outro a sua própria diferença. Quem mais existe a não ser quem se prende diante de tal objeto? O olhar capta quem olha e torna o outro um si próprio, tudo mais é irreconhecível, assustador pois desconhecido. Narciso é o nome único, nome de quem olha que se torna de todos.
Nesse momento é possível concluir, e possibilidade não é necessidade, que captar um tempo pode ser captar um segundo, uma fração mínima, tão pequena que é incapaz de conter o volume de sentimento, de idéias, aquilo que é capitado no instante, e é aí que transborda: o recipiente não contém o conteúdo. Momento mágico, só as mentes livres transbordam. Quem está dentro de um recipiente não consegue entender a possibilidade de outra dimensão, o espelho pode refletir não só um rosto, mais a depender do movimento intencional de quem vê, pode refletir outra coisa mesmo que seja nada: quem vê é o olho do juiz.
E por falar em tempo, já passou um segundo desde o encontro despropositado entre o rosto e o espelho, é preciso abrir a porta, respirar outros ares e fingir a mais pura sobriedade. Todo mundo saberia que é mentira, desde que um único ser daquela multidão fora do banheiro enxergasse aquele rosto fingidor. Tudo bem, a sobriedade é um porre.
Mais um segundo se passou, é preciso sair, tem um outro rosto querendo aquele espelho.

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